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#46

Rio de Janeiro, 03 de março de 2010

Carlos,

Nasci na época errada. Sim, eu sei o quão clichê isso parece. Sim, eu sei que todos os nostálgicos irremediáveis insistem em dizer que nasceram na época errada. Chatos, todos chatos. Não que eu não seja, mas eles são mais. O pior tipo de chato é o chato desinteressante. Não que eu seja interessante, mas... Você entendeu. Eu acho.
Como eu dizia, nasci na época errada. Não tenho cabeça pra essa celeridade toda. O dia mal amanhece e quando se vê já é outro dia. Tudo é tão acelerado e tão igual que eu me perco na contagem. Não sei mais se hoje é segunda, quinta ou domingo. Também, que diferença faz?

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#66

Rio de Janeiro, 10 de julho de 2011

Carlos,

Já não sei que remédio tomar. Antes os remédios rosados me ajudavam a te esquecer. Não esquecer de fato porque eu nunca te esqueci absolutamente, mas ajudavam a acalmar os ânimos da memória e desfaziam um pouco desse nó que trago no estômago. Os remédios brancos, com uma risca no meio, serviam para afrouxar um pouco a corda que laça o meu coração, mas que as vezes laça tão forte que não ele não consegue bater e eu começo a ter problemas para respirar.

Pensei que, como já não fazem efeito, não custa nada parar de tomar todas essas pílulas que me servem de colação entre o café da manhã e o almoço. Quando almoço. Já passei por vários distúrbios alimentares, dizem os médicos. Não sei precisar bem que fase estou vivendo agora. Passou a ansiedade descontada nos doces, principalmente chocolates que Alice me trazia, por vezes escondido. Passou também as horas vomitando no banheiro. Doces nunca me fizeram muito bem. Hoje me satisfaço com meu café preto, sem açúcar. Não há contrastes em meus sabores. Saboreio o café como saboreio a própria vida. Rascante.

Gosto dessa palavra: Rascante. Não tanto quanto do seu nome, mas... Quem há de comparar você com o resto? Não eu. Certamente não eu. Se foi você o grande culpado da minha vida - miserável vida. Tanto dos momentos felizes quanto desses que agora vivo. Dizem que não devo te culpar. Dizem que não devo transferir pra ninguém uma responsabilidade que é minha. Pro inferno com essa responsabilidade. Eu sei que no fundo até você sabe que é o responsável. Quem mandou se aproximar de mim, me ter ao seu lado, fazer juras recheadas de "para sempres" e partir, assim. Batendo a porta como quem vai a feira.

Pro inferno. Pro inferno. Pro inferno. Eu só queria poder desatar esses nós que me prendem. Deitar na minha cama e voltar alguns anos no tempo. Naquele tempo em que construí todas as memórias felizes que me assombram nas madrugadas e nos dias de sol ou de chuva. Naquele tempo em que não haviam cicatrizes tão profundas nem dores tão lacerantes. Quando tudo parecia simples e a morte era o meu maior medo, não maior desejo.

Há dores piores que a morte. Eu nunca acreditei muito nisso, mas agora que sou só pedaços, eu entendo. Quero apenas deitar meus restos em algum canto, qualquer canto. Quero voltar ao pó. Eu já sou pó, Carlos. Eu já não vivo em mim desde aquele fatídico dia. Eu não vivo mais nesses restos. Faça com que eles me deixem ir.

Olívia.

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#32

Rio de Janeiro, 30 de setembro de 2009

Carlos,

Voltei a trabalhar hoje. As pessoas acham que eu devo retomar a minha vida. Foi estranho chegar ao escritório. Os mesmos rostos, mas não os mesmos olhares. Alice acha que eu estou exagerando, mas eu senti um desconforto. Senti como se todos reparassem em cada movimento meu. Tenho dó daquelas pessoas. Sei que você pode achar que eu sou (mais) louca, que todos devem sentir pena de mim, mas... eu já cheguei ao fundo do poço e daqui eu não caio mais.

Tenho pena deles. Cavam seus próprios buracos. Acordam de manhã, colocam sua máscara, seu salto alto, seu terno com vincos impecáveis, mas suas mãos estão sujas. Garanto que nenhum dali passaria por uma análise mais criteriosa. Nenhum. Duvido que algum seja minimamente feliz.

Fiquei pensando se ainda sofrem com os mesmos problemas.Lembra da Magali? Te falei dela. É secretária do Jorge. Um exemplo da moral e dos bons costumes que me olha com aquele olhar de dó, mas que deixa o marido e as duas filhas para frequentar motéis baratos com o chefe. Todo mundo sabe, todo mundo finge não saber. Tudo é tão hipócrita.

O Carlos Eduardo, aquele que era apaixonado por mim e de quem você até tinha ciúmes, lembra? Nem me olhou. Na verdade, me olhou, mas de soslaio. Quase achei graça. Passei a ser uma mulher que inspirava respeito e admiração pra uma de quem as pessoas sentem dó e até certo medo.

A verdade é que, além da pena que eu mesma nutro por essas pessoas, tem também um pouco de inveja. Fico pensando que se eu fosse uma delas, poderia mudar. No fundo eu sei que de nada adianta pensamentos como esse. Eu já fui uma dessas pessoas e não fiz nada. Talvez, se eu tivesse um exemplo como o meu... Não sei. O problema é que elas olham pra mim e não se enxergam. Elas veem a minha dor, mas não mudam. Como se fossem todos imunes a todos os problemas do mundo.

Não consegui ficar até a hora do almoço. Levantei, peguei minha bolsa e saí. Pensei em dar uma volta pela praia, mas quando me vi, estava dentro do elevador. Me senti segura em casa, quando fechei o trinco. O telefone tocou a tarde inteira, mas não atendi. Certamente não era você, era? Não vou voltar pra aquele lugar. Vou me assumir como alguém quebrado e sem conserto. Não quero mais vestir máscaras, pentear o cabelo e usar roupas pra fingir ser algo que eu não sou.

Eu sou destroços. Destroços de mim. Eu sou o que sobrou de mim mesma. E isso basta.

Olívia.

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#92

Rio de Janeiro, 01 de abril de 2012

Carlos,

Hoje eu fui a casa da Alice. Foi um bom dia. Vimos fotos da infância, relembramos os momentos que passamos no interior. Quase pude sentir o cheiro da terra molhada e de laranja tirada do pé. Não sei dizer ao certo há quanto tempo não me sentia em paz. Talvez faça tanto tempo que eu tenho dificuldades de reconhecer, mas hoje, se eu não senti paz, foi algo que se assemelhou muito.

Não quis dormir lá. Ainda tenho problemas em dormir longe da nossa cama. Longe do seu cheiro que, por mais que digam que não existe mais, eu teimo em sentir entre os nossos lençóis. Pouco antes de abrir a porta, no décimo andar, fiz o mesmo pedido mudo, para que você estivesse ali, me esperando na porta de casa. Pensei que poderíamos conversar, você me daria um abraço e o tempo voltaria a correr. Você não estava e o tempo permanece parado.

Apesar do tempo estar parado desde o dia em que você partiu deste nosso lugar, eu não me sinto mais a mesma.   Não me sinto mais alguém capaz de ter sentimentos profundos. Não me sinto capaz de amar, por exemplo. Sei que você disse que, com o tempo isso passaria, que eu encontraria outra pessoa e todos aqueles clichês de fim de relacionamento. Não sou uma dessas. Aliás, não sou como nenhuma. E digo isso sem qualquer prepotência de quem quer se sentir única e especial porque eu não sou. Me sinto como um pedaço de coisa alguma. Um pedaço.

Talvez essa falta de esperança no que quer que seja, me traga algum conforto. Não vivo mais as exaltações e expectativas a vida. Já não espero que o tempo volte a correr. Estou resignada e a resignação me trouxe  essa nova paz, se não paz, ao menos algo que o valha. Não te desejo mal, por mais que você talvez pense que sim. Não te queria nessa situação em que eu estou porque, sabe... eu te amo. Por mais que pareça que não. Por mais que pareça que tudo isso é só uma obsessão de uma mente atormentada. Por mais que até pra mim mesma isso não pareça muito normal.

É bem verdade, não consigo ou talvez não saiba controlar tudo isso que se passa. Não consigo controlar o que eu sinto, o que penso, meus desejos, talvez nem existam mais desejos em mim, mas apenas essas necessidades. Ou essa necessidade de pensar em você em todos os segundos do meu dia, dos meus dias. É como se a minha vida se resumisse a isso, a pensar em você. Em relembrar as lembranças que eu nunca mais viverei. A sonhar com um futuro que eu nunca mais terei. A continuar sendo sua, mesmo sem jamais ter sido realmente.

Olívia

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#87

Rio de Janeiro,  16 de março de 2012

Carlos,

Me sinto aprisionada nesse pedaço de tempo que não passa. Sei que preciso sair, voltar a superfície e respirar, mas há algo que me puxa pra baixo e me segura pelos pés. Sinto como se não adiantasse me debater. Como se quanto mais eu me debatesse, mais apertado ficasse. Às vezes sinto que tudo o que tenho de fazer é relaxar, fechar os olhos e me deixar ir pro fundo. Descer lentamente. Até quase adormecer nos braços do que me aprisiona.

Aprendi a conviver com a dor, como se convive com uma velha amiga que perdeu a lucidez. Só me resta aprender que essa dor faz parte de mim, mas não me incapacita. Você pensa que eu sou louca, não pensa? Todos pensam... Se eu não fosse eu e fosse outra, provavelmente pensaria também. Uma mulher com 36 anos e que nem faz as unhas... Sabia que eu não faço mais as unhas? São elas que me alimentam em dias em que eu sinto fome de você. Às vezes a fome é tão voraz que meus dedos sangram. Pequenas gotas de sangue salgado. Você tem gosto de sangue salgado.

Esses dias Alice falou comigo que ela e Fátima pensaram em me levar a uma igreja ou a um centro espírita. Chega a ser engraçado como até a mais ateia das pessoas busca solução na fé quando não encontra nada palpável a que se agarrar. Não sou assim. Nem todo o sincretismo religioso dessa terra me faria crer que eu posso adorar algo ou alguém mais do que adoro a ti. Quando disse isso a Alice, ela se assustou. Teve medo que me exorcizassem ou algo assim. Ainda existem exorcismos? Talvez tu sejas um demônio ou talvez seja eu.

Mas... não tenho fé. Nem falo aqui só da fé em algo superior. Falo da fé nas coisas da vida. Não tenho fé. Já não espero melhorar. Já não espero que você volte. Já não espero respostas pra essas cartas mal escritas. Não tenho fé que te amo, nem sequer que te amei um dia. O amor não deveria ser assim, tão sujo, tão porco. O amor deveria fazer as unhas e pentear os cabelos. O amor deveria iluminar os caminhos, não pesar sob minhas costas a ponto de não me deixar dar mais um passo.

Não me vejo mais como essas pessoas que acordam pela manhã, tomam seu café, vão trabalhar. Lembra de como eu me estressava com as coisas do trabalho? Lembra de como tudo aquilo me aborrecia? Esses dias me peguei pensando nisso: Quantas vezes você reclamou dizendo que eu não me preocupava contigo, que só meu trabalho importava pra mim. Hoje eu só me importo contigo, mas tu não estás mais aqui. Irônico. Perturbador. Infeliz. Assim como eu.

Olívia


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#36

Rio de Janeiro, 24 de novembro de 2009

Carlos,

Hoje encontrei minha aliança. Não achei que a tivesse mais, mas também não sei porque achei que não tivesse. Olhando pra ela, agora, ao lado da folha de papel, já não é uma aliança, mas um pedaço de metal sem valor. Pensei em atirá-la pela janela, mas o remorso provavelmente me consumiria por longo tempo. Já bastam meus próprios remorsos, aqueles que cultivo com tanto cuidado. Não, não pense que estou fazendo drama. Não estou. Não quero que sinta pena de mim. Eu só quero que você entenda que esse pedaço de história que hoje está jogado em minha escrivaninha, confunde meus sentimentos.

Lembro do dia em que você me deu, eu abri a caixinha e fiquei sem saber que reação ter. Um misto de terror e surpresa invadiram meu corpo. Fiquei pálida, fria, ao menos você disse que fiquei assim. Não sabia se devia tirar o anel da caixinha e colocá-lo no dedo. Não sabia se deveria responder qualquer coisa. Naquele momento, eu só não queria que a minha vida mudasse; Não é irônico? Quando você partiu, eu também não queria que minha vida mudasse, mas em um sentido tão oposto...

Talvez o problema seja esse. Talvez sejam as mudanças.Não gosto de mudanças. Nunca gostei, mas desde que você partiu, uma mudança é a única coisa pela qual anseio. Poderia me habituar novamente a vida sem você. Afinal, ninguém passa a apenas existir assim em um corpo sem vida só porque terminou um relacionamento - ao menos é o que todos dizem e, apesar de você não falar, é o que eu sei que você também pensa - mas todos os dias, ao acordar, penso que tenho o dia inteiro pra fazer o que eu quiser, mas a única coisa que tenho vontade é de pensar em você.

E as horas vão passando como se não passassem. Como se eu estivesse presa a uma falha do tempo que me deixa nesse lapso sem vim. De repente passou da hora do almoço, da hora do banho. De repente passou da hora. Já é noite. Hora de dormir. E acordar na mesma rotina. A eterna rotina de viver pra lembrar que um dia eu vivi por você. A rotina de viver pra saber que nunca mais viverei por nada ou ninguém. Quantas vezes me peguei pensando no que eu faria se ouvisse o barulho da porta e fosse você virando a chave, entrando, segurando minha mão e dizendo que as coisas se resolveriam. Daí eu olho ao redor, pra esse caos em que se transformaram os meus dias e percebo que você não vai chegar. Eu não vou ouvir nunca mais o som do seu chaveiro batendo na chave, dando duas voltas na fechadura e seu 'Boa noite, amor'. Não há mais amor na noite.

Talvez seja por isso esse apego às pequenas coisas. Ao anel com seu nome gravado, com o símbolo de infinito. Talvez eu devesse ter aprendido que nada é infinito, só essa dor.

Olívia

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#69

Rio  de Janeiro, 22 de julho de 2011

Carlos,

Rasguei a última carta. Nada do que eu escrevia parecia sério. A essa altura, já sinto como se a minha história fosse um grande clichê que não merecesse vida. Cada palavro que traço torta leva embora um pedaço do que eu sou e quão ridículo isso pode ser aos olhos daqueles que nunca sofreram?

Eu sofro, Carlos, mas ninguém entende. Dizem que tenho que seguir com minha vida, que tenho de tomar meus remédios regularmente e pagar minhas contas em dia. Ninguém se importa realmente. Querem apenas que eu continue cumprindo o meu papel na sociedade e quando eu digo que quero que a sociedade se acabe em sua própria lama, me olham como se eu dissesse um absurdo.
Absurdo, Carlos, é viver sem ter motivo. É acordar sem querer levantar e ir dormir com a esperança de que o amanhã nunca chegue.

Voltei para casa. Não queriam me deixar voltar, mas expliquei que me sinto melhor aqui. Que a crise havia passado, que não voltaria a praticar nenhum ato de desespero. Você e eu sabemos que não se trata de um ato de desespero, mas de desesperança. É difícil fazê-los enxergar, então me calo ou, se não calo, finjo concordar. Não achei que fosse capaz de tanta dissimulação, mas precisava voltar aos meus lençóis, os teus lençóis... Aqueles que guardam a lembrança eterna do último sonho que sonhei contigo.

Tive medo. Ao abrir a porta, imaginei que Alice pudesse ter vindo aqui e jogado fora tudo o que restou de ti, mas as coisas ainda estavam em seu lugar. A desordem em seus mínimos detalhes. O porta retratos que fica sobre o aparador da sala, permanecia virado. Por cima dele, uma filha de papel com um número de telefone que não lembro mais de quem é.

Cada pedaço desse apartamento carrega um pouco de ti e, se não posso mesmo partir, quero quedar-me aqui. Ser consumida lentamente por essas memórias, ser devorada por esses sentimentos de cuja beleza já até esqueci. Quero padecer. Quero padecer no que sobrou de ti. Do pouco que restou de ti. Tão pouco tu podes, inclusive, seguir com tua seguir sem eles, enquanto eu, não posso sequer pensar em respirar sem eles.

Ah, essas paredes brancas são como as de um hospício. Além delas não há vida, não há despertar, não há recomeços. Dentro delas também não. Essas paredes encerram em si toda a esperança porque não há esperança longe de ti, Carlos.

Se pudesse fazer um último pedido: Que me permitam escrever pra ti até que a última gota de sofrimento transborde em meu coração já ferido e que essa onda de dor que se espalha por meu corpo faça com que eu sinta o arrepio derradeiro na certeza de que vou pra um lugar distante, um lugar em que eu não precise existir.

Olívia

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